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Clássicos na Crítica | Mulan 木蘭

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Seremos rápidos como um rio
Com a força igual a de um tufão
Na alma há sempre uma chama acesa
Que a luz do luar nos traga a inspiração”

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A identidade das princesas e heróinas da Disney sempre esteve em constante mudança. Princesas como a inocente Branca de Neve, ou a ingênua Bela Adormecida eram os exemplos perfeitos do estúdio no início das suas produções: mulheres doces e meigas que viviam à espera de um príncipe encantado para salvá-las das maldades que às rodeavam. Aos poucos esse perfil foi mudando: Ariel queria conhecer além do mar em que vivia e se tornar humana, Bella queria mudar o homem frio e bruto que a aprisionava, Jasmine desafiava o pai para ser livre e lutar pelo seu povo.  Personagens e personalidades diferentes, porém compartilhando o espírito de coragem, independência e ousadia que antigamente não era comum entre as mulheres. As princesas e heróinas citadas foram as “antepassadas” de Mulan dentro da Disney e por isso talvez Mulan tenha sido uma protagonista tão marcante, memorável e apaixonante. Ela representa a mulher moderna em uma época onde os casamentos eram arranjados e a única função da mulher era ter filhos e cuidar do seu marido. Ela representa a dúvida e o receio que todos nós temos dentro de nós em vários momentos de nossas vidas.

A história de Fa Mulan se passa na China de 450 d.C., quando a construção da Grande Muralha desperta a fúria dos Hunos que, comandados por general Shan-Yu, invadem a China. O Imperador então ordena que um homem de cada família se apresente ao império para lutar na guerra e defender seu país. Envergonhada por ter sido rejeitada pela casamenteira e desonrado sua família, Mulan vê seu pai, já velho e debilitado, ser convocado para a guerra. Num estopor de coragem e audácia, Mulan corta os próprios cabelos e se transfigura em homem, fugindo de casa em direção à batalha no lugar do seu pai. Lá, a garota encontra o campo de concentração do Capitão Lee Shang (dublado por Jackie Chan na versão chinesa do filme), onde precisa treinar ao lado de um exército despreparado, fazendo tarefas típicas de homens e ainda tentando esconder seu disfarce. Enquanto isso, os Hunos vão adentrando sorrateiramente a China.

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A história do filme é beseada em uma lenda chinesa chamada “O Poema de Mulan” (em inglês Ballad of Mulan e em chinês: 木蘭辭) no qual Mulan se tornou uma grande heroína de guerra depois de lutar por 12 anos. Adaptações foram feitas, é óbvio, porém a história serviu a um dos propósitos principais de todos os clássicos Disney: passar uma mensagem. Mulan, assim como muitos personagens Disney, tem sua personalidade e seu verdadeiro “eu” reprimidos pelos dogmas da sociedade. No caso de Mulan, o fato de ser extrovertida demais e um tanto quanto descuidada faz com que a moça não consiga um marido decente para honrar sua família. Enquanto as outras garotas sabem todos os deveres da boa esposa, Mulan escreve uma cola no braço às pressas, enquanto engenhosamente dá comida às galinhas e brinca com seu cachorro. A vergonha então cai sobre sua família. Esse é o ponto de partida para a decisão de Mulan em tomar o lugar do pai na guerra para salvá-lo, fugindo de casa.

Preocupados com Mulan, os ancestrais da família Fa acordam o dragão Mushu, que tem a única tarefa sem graça de acordar a estátua do Guardião da Família, porém ele acaba quebrando-a e, desesperado, vai atrás de Mulan na esperança de trazê-la a salvo para casa e se tornar o novo guardião. Mushu representa o lado mágico e fantasioso dos contos de fadas típicos da Disney e, apesar de não ter super poderes, tenta ajudar Mulan de todas as formas possíveis a passar despercebida como homem já que, se for descoberta, será condenada à morte. Porém Mushu é mais do que uma ajuda para Mulan. Ele é o alívio cômico principal do filme. Em sua versão original, a dublagem do dragãozinho é feita por Eddie Murphy e muito do seu “estilo” está presente na caracterização de Mushu. Até a dublagem brasileira é do mesmo dublador que dá voz  ao Murphy nos seus filmes (Mário Jorge). São deles as melhores piadas, sacadas, metáforas e frases de duplo sentido do longa. Porém Mushu tem mais importância na história do que parece. Tentando salvar Mulan, Mushu entra na mesma jornada de auto conhecimento e descoberta que a garota. Assim como a protagonista, ele é desprezado e rebaixado pelos ancestrais dos Fa, e viajar com ela se torna uma atitude tão desesperada quanto a fuga de Mulan para salvar o pai e se descobrir. Eu diria que acompanhamos uma jornada dupla de aprendizado, compartilhada por Mulan e Mushu.

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Pra variar, “Mulan” está cheio de canções apaixonantes. Com músicas de Mathew Wilder (música) e David Zippel (letra) e uma trilha sonora belíssima de Jerry Goldsmith, somos transportados à história de Mulan de forma prazerosa, com letras encantadoras que às vezes demonstram humor, outras vezes superação ou até mesmo tristeza. Na trilha sonora instrumental destaco a faixa “Mulan Decision” que é tocada no filme na cena em que Mulan se transforma em homem e foge de casa. A versão do filme não é a mesma versão presente no CD da trilha sonora brasileiro, pois utiliza um sintetizador na mesma, porém é possível encontrar a faixa original na edição limitada da trilha sonora, lançada apenas nos Estados Unidos. Quanto às músicas, destaco minhas favoritas: “Honra a todas nós” que nos apresenta de forma engraçada a cultura chinesa de levar as jovens moças de cada família para a Casamenteira em busca de um casamento próspero, “Não vou desistir de nenhum” que mostra a luta do Capitão Lee Shang para treinar seu exército em uma cena de superação de arrepiar e, é claro, a lindíssima “Imagem” que mostra Mulan num momento de profunda tristeza e dúvida se questionando sobre si mesma. Pra quem não sabe, Imagem foi imortalizada na forma de single de lançamento da cantora Christina Aguilera. No caso da versão original, o título da música é “Reflection” e foi a responsável por lançar Christina Aguilera no mercado da música pop. No Brasil, a faixa teve uma versão em português cantada pela, ainda adolescente, Sandy, da dupla Sandy e Junior. Sandy e Junior também gravaram juntos a faixa “Seu coração” (“True to your heart”) que toca nos créditos do longa. Vale ressaltar que a versão de Sandy e de Aguilera não são as mesmas versões que tocam no filme. A música é a mesma, mas a versão do filme é menor e com leves mudanças na letra para se adaptar à trama. No Brasil, quem interpreta “Imagem” no filme é a dubladora Kacau Gomes.

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Durante os 5 anos de produção, “Mulan” contou com mais de 700 profissionais, incluindo desenhistas, designers, técnicos e artistas. Todo esse trabalho é visível pela qualidade do filme. A animação é de primeira linha, com traços que lembram a arte chinesa e com tons mais pastéis e desbotados, muito comuns na China, com exceção das cenas de batalhas que possuem tons mais fortes e escuros, para passar a sensação de tristeza e perigo. Apesar de ter feito o máximo para se manter fiel à lenda de Mulan e na representação da cultura chinesa, “Mulan” não foi muito bem aceito por muitos chineses. Eu não entendo bem o por que. O filme retrata de forma tão bela a China, com paisagens lindas (só a abertura já é uma belíssima cena na Muralha da China), trilha sonora delicada,  e história emocionante. Não entendo por que não gostar do filme. Às vezes eles não gostaram da Mulan em si, ousada e rebelde, indo contra os valores da cultura chinesa, ou então não gostaram das mudanças com relação à alguma parte do “Poema de Mulan”… Vai saber…

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Trailer original de 1998 (com cenas na fase de produção):


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Considero “Mulan” umas da produções mais poderosas da Disney, chegando perto de grandes nomes como O Rei Leão, A Bela e a Fera e A Pequena Sereia. Sua história é densa e, em certos pontos, triste (a cena onde o exército de Lee encontra uma aldeia atacada pelo hunos é de cortar o coração), mas sem perder o humor nunca, criando uma narrativa que varia entre os gêneros da comédia e do drama sem desprender a atenção do espectador. A magnitude e beleza do filme podem ser retratados em cenas grandiosas como a cena da redenção de Mulan no fim do filme ou a batalha contra os hunos na montanha coberta de neve. Só me lembro de ter visto uma cena de ação tão épica e tensa como essa em O Rei Leão, na cena da debandada da manada e a morte de Mufasa.

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Apesar de retratar o preconceito contra a mulher em boa parte do filme, considero a mensagem principal de “Mulan” a mesma mensagem presente em tantos outros longas da Disney: que é mais importante o que está dentro de nós do que fora. Isso é comprovado no clímax do filme quando Mulan, já com seu disfarce descoberto, tentar avisar à Lee sobre uma possível invasão e é ignorada. São seus amigos do exército que ignoram o fato dela ser mulher e se mantém fiéis à sua amizade, ajudando a garota a tramar um jeito de salvar o imperador dos Hunos numa cena de ação muito bem construída e que leva a um dos momentos de redenção mais épicos e arrepiantes dos estúdios Disney, quando o Imperador e toda a China se curvam diante de Mulan como agradecimento aos serviços prestados ao império enquano soldado. É uma cena onde o preconceito é vencido e Mulan finalmente se vê de certa forma elogiada por algo certo que tenha feito. Essa cena só é superada pela cena seguinte, quando Mulan, já em casa, oferece a espada do derrotado general huno, o selo imperial e a honra para a família Fa em nome do Imperador, para seu pai que, por um momento fica surpreso mas deixa de lado a honra e seus costumes para abraçar seu bem mais precioso e fonte de todo seu orgulho: Mulan. Não tem como não se emocionar com uma história como essa. Uma história sobre preconceito, sobre superação, auto conhecimento e acima de tudo sobre lutar por quem se ama. Nossas dúvidas, medos, incertezas e desejos são retratados em Mulan e em sua história. Nós, homens, mulheres, crianças, somos todos como ela. Estamos em uma jornada eterna em busca de nós mesmos, de descobrir quem somos e provar que valhemos à pena. Nós somos Mulan e todos nós esperamos descobrir quem nós somos ao olhar para nossa própria imagem no espelho.

Quem é que está aqui,
Junto a mim, em meu ser?
É a minha imagem
Eu não sei dizer

Como vou desvendar
Quem sou eu
Vou tentar
Quando a imagem
De quem sou
Vai se revelar”

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Fique de olho para os próximos especiais dos “Clássicos na Crítica“!

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Escrito por Felipe Andrade

Estudante de Administração, nerd, cinéfilo, colecionador e uma eterna criança. Não exatamente nessa ordem...