Olá Camundongos! Hoje, vamos dar início ao especial Eras da Disney, no qual poderemos conhecer mais sobre a produção dos clássicos que tanto amamos. Toda quarta-feira uma nova parte será publicada, começando hoje com a pioneira Era de Ouro.
O especial é uma adaptação do trabalho de conclusão de curso do Camundongo que vos escreve, então, não estranhem às vezes a linguagem um pouco mais rebuscada. Antes de adentrarmos no túnel do tempo preciso esclarecer algumas coisas com esta breve introdução…
Subdividir a obra de um estúdio cinematográfico em eras pode tornar-se um trabalho ingrato quando não se escolhe um caminho próprio. Por vezes, a delimitação será diferente em outros estudos, entretanto, considero mais adequado adotar um conceito individual que aponte com mais exatidão as descobertas da minha pesquisa. Com isso, se constrói uma proposta inteligível e mais proveitosa.
Primeiramente, é necessário o entendimento do que é uma era. Historicamente, eras são delimitações temporais que abarcam características similares, fazendo com que tal período seja entendido de forma distinta de outro. Neste estudo, procuro categorizar os filmes e dividi-los em eras para que, em grupo, possam ser melhor entendidos e avaliados.
Assim sendo, será possível entender porque filmes do período da Segunda Guerra Mundial não podem ser analisados ao lado de filmes dos anos 1960, por exemplo. Essas subdivisões vão além da simples categorização, elas servem também para se obter um olhar mais detalhado sobre determinada época. Partindo de um exemplo do estudo, com as subdivisões é possível entender em quais aspectos os filmes de princesa da primeira década dos anos 2000 se assemelham ao clássico Cinderela, de 1950. Através dessa divisão bem delineada tornam-se possíveis essa e muitas outras comparações.
É necessário entender que tal divisão por eras vai além do caráter cronológico. Do ponto de vista cinematográfico, considero que o início ou fim de uma era precisa levar em conta aspectos como: recepção de crítica e público, direção do estúdio e de estilo – neste caso, de animação, que pode ser 3D ou outra. A mudança de uma era para outra só é percebida quando se tem uma visão exterior e distanciada. Com isso, existem diversas possibilidades de divisão. Por isso, é necessário o entendimento do estudo como uma visão particular, mesmo que ela possa ser compartilhada por outros.
Outros que já realizaram a mesma pesquisa [1] caracterizam determinados filmes em eras distintas das que eu os colocarei. Há até mesmo divisões que contêm menos eras do que as que eu me proponho a analisar. Esse aspecto subjetivo da pesquisa é importante de ser entendido pois permite ao leitor discutir o estudo e até mesmo propor uma nova visão.
Isso torna-se ainda mais importante uma vez que o Walt Disney Animation Studios nunca se propôs a institucionalizar as eras do estúdio. Tal pesquisa partiu desde seu início de fãs e estudiosos de cinema. Entretanto, há certos aspectos, na divisão por eras, que já são percebidos como um olhar oficial do estúdio adotado com o tempo [2]. Mas isso é uma grande exceção, uma vez que o estúdio não daria como oficial a existência de uma Era Sombria, como eu farei.
Por último, antes de iniciar as divisões, o cânon do estúdio precisa ser delimitado. Atualmente, a divisão de filmes animados da Disney é composta basicamente de três grandes estúdios: Walt Disney Animation Studios, Pixar Animation Studios e o DisneyToon Studios. O Walt Disney Animation Studios é a joia da coroa, tendo produzido, desde 1937, cinquenta e cinco longas-metragens. O Pixar Animation Studios é o estúdio originado da compra da Pixar pela Disney em 2006. E o DisneyToon Studios é a produtora de filmes de orçamentos menores e lançados diretamente em home video.
Neste estudo, a subdivisão será feita apenas dos filmes lançados pelo Walt Disney Animation Studios, que são conhecidos como o cânone, uma vez que não têm interferência de parceiros, como a Pixar, e também não seguem padrões mais baixos como os adotados pelo DisneyToon Studios. Portanto, não deve-se esperar nesse estudo a presença dos sucessos como Toy Story (1995) e UP: Altas Aventuras (2009), nem mesmo as sequências de baixa qualidade de clássicos, como Cinderela II: Os Sonhos se Realizam (2002).
Para descrever o processo de criação dos filmes e outros aspectos históricos, utilizei como bibliografia principal o livro The Art of Walt Disney: from Mickey Mouse to the Magic Kingdoms and Beyond, do autor britânico Christopher Finch, que descreve minuciosamente a produção dos longas-metragens contando histórias de produção e dando detalhes técnicos preciosos.
Acredito que tal estudo seja válido devido à importância do Walt Disney Animation Studios para a história do cinema mundial. Há poucos estúdios atualmente que podem ser analisados pelo conjunto de sua obra, uma vez que não seguem a mesma linha de pensamento desde sua fundação. Apesar das diversas mudanças ao longo dos anos, o estúdio de Walt Disney manteve-se fiel aos ensinamentos de seu fundador, possibilitando uma jornada em que é clara a identificação dos filmes do estúdio.
Estudar as eras é, além de mergulhar na história, entender como o cinema não é uma atividade isolada. Ele está ligado a acontecimentos econômicos, sociais e políticos. O Walt Disney Animation Studios é exemplo de marca consolidada, portanto é digno de ser estudado como ele conseguiu se manter durante décadas. Além disso, utilizei livros sobre períodos específicos dos estúdios Disney, e fiz a análise da filmografia, buscando relacionar cada filme à era em que estava inserido.
O estudo é uma viagem nostálgica, em que cada leitor insere-se em determinada era graças a sua memória afetiva ou até mesmo escolhe a sua preferida. Ao estudar as eras separadamente pode-se ter uma visão melhor do todo e entender as evoluções nos filmes ao longo das décadas, mesmo que por vezes fossem utilizadas fórmulas já realizadas.
Minha abordagem segue uma perspectiva de fã, mas alicerçada em pesquisa e conhecimento acumulado por anos. Espero que esse especial sirva para exercitar o olhar crítico sobre os filmes, gerando entendimento do tempo em que cada um está inserido. Além de tudo, para os fãs do estúdio, acredito que o estudo seja de grande recompensa intelectual e emocional. Agora que os conceitos básicos deste especial estão explicados, vamos caminhar pela história do Walt Disney Animation Studios!
Em 1934, Walt Disney decide expandir seus horizontes artísticos e então nasce o conceito do que seria o primeiro longa-metragem de animação de todos os tempos. Após o sucesso dos curtas animados chamados de Silly Symphonies [3], ou Sinfonias Ingênuas em tradução livre, Disney precisava ir além conceitual e financeiramente. A produção de curtas, apesar de bem-sucedida, não gerava receita suficiente para a manutenção de um estúdio e tampouco se assemelhavam ao retorno financeiro de um filme. O que para muitos era um tiro no escuro, ou até mesmo uma loucura, para Disney era a realização de um sonho que já vinha desde sua infância. O primeiro filme ao qual ele assistiu na vida foi uma versão muda de Branca de Neve, dirigida por J. Searle Dawley no ano de 1916.
Os cartoons eram sucesso absoluto na época, mas seria possível entreter o público com uma animação de setenta minutos ou até mais? O plano já era arriscado desde o início, mas com o sinal verde para a produção do filme é que mais problemas apareceriam. O longa-metragem precisava ser mais realista do que o cartoon, e isso já se tornava um entrave para os animadores, uma vez que as técnicas necessárias ainda não existiam. A maior dificuldade enfrentada foi encontrar uma forma convincente de animar o corpo humano na tela.
Personagens como Mickey Mouse, por não existirem no mundo real, não trariam tanto desconforto aos olhos do público ao realizarem movimentos improváveis. Entretanto, com humanos, a verossimilhança era essencial. Sendo assim, em 1934, os animadores fizeram o curta The Goddess of Spring (1934), que contava a história de Perséfone. O cartoon foi na verdade um treinamento para a criação da Branca de Neve. Com isso, os animadores puderam perceber como melhor imitar o corpo feminino e chegar a um resultado mais convincente quando o filme chegasse às telas. Todas as técnicas acumuladas durante a produção dos curtas-metragens foram aproveitadas e lapidadas para serem melhor empreendidas no que seria Branca de Neve e os Sete Anões (1937).
Então, em 1936, toda a equipe já estava preparada, os maiores problemas já haviam sido contornados e a produção começou a todo vapor. Nos créditos iniciais do filme, Walt Disney agradece a todos que participaram do projeto. Apesar de ser um esforço coletivo, o filme existia completamente na cabeça de seu criador e ele seria feito do seu jeito. Todas as ideias de Disney eram para que o filme fosse o mais sofisticado possível, afastando-se assim de uma versão animada de uma comédia musical. Esse cuidado era refletido em várias etapas da construção do filme. Em todas as leituras de roteiro, Disney comparecia e guiava os animadores onde ele queria chegar com o filme. A produção como um todo centralizou-se nos últimos doze meses antes do lançamento, mas o conceito inicial da história já existia na cabeça do autor há anos.
Finalmente, em 21 de Dezembro de 1937, era lançado Branca de Neve e os Sete Anões, a ideia considerada louca de U$ 1.500.000, valor altíssimo para poucos anos após a Grande Depressão. A grande première realizada em Hollywood contou com musas da época, como Judy Garland e Marlene Dietrich, e foi o sonho realizado de Disney. No fim das contas, Branca de Neve não foi uma jogada de sorte.
Disney sabia do potencial de sua criação e a recepção incrivelmente positiva na época foi apenas o resultado de anos de trabalho empenhado. Não só o público recebeu bem o filme como a crítica também o fez. A homenagem mais memorável fora a da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que premiou Walt Disney com sete pequenas estatuetas do Oscar® pela realização do filme. Muitos acreditavam que seu primeiro filme foi também o seu auge. Entretanto, prefiro pensar que foi a abertura para novas experimentações que viriam moldar a história da animação, e porque não do cinema como um todo.
Aproveitando do sucesso de seu primeiro longa, o estúdio logo em seguida começou a produção de Pinóquio, que seria lançado em 1940. O segundo filme do estúdio traria todas as qualidades de seu predecessor somado à uma tecnicidade brilhante. Já na abertura do filme percebe-se a qualidade técnica da produção. A história é iniciada com um take aéreo da cidade introduzindo assim o espectador na atmosfera do filme. Tal técnica é comum atualmente, mas deve-se pensar na reação do público ao experimentá-la na década de 1940. Muitas melhorias foram alcançadas ao longo dos anos, desde os curtas-metragens.
Em Pinóquio, a junção entre música e narrativa estava ainda mais clara e eficiente, sem que houvesse sobras no produto final. A profundidade das paisagens foi explorada ainda mais, gerando vislumbre e ao mesmo tempo custos maiores. Com isso, os animadores começaram a pensar em técnicas econômicas mas que gerassem o mesmo efeito encantador na audiência. Sendo assim, Disney podia conciliar o seu perfeccionismo com os custos altíssimos. Um exemplo disto era o personagem Fígaro, o gato de Gepetto. Seus desenhos precisavam de acabamentos especiais em todas as células pintadas, o que gerava um trabalho ainda maior. O que parecia desnecessário para muitos era o que Disney prezava e caracterizava sua obra como única.
Em seu segundo filme, Disney não foi tão cauteloso, acelerando a produção desde o início. Os problemas desta vez pareciam ser mais narrativos que técnicos. Muito se discutiu, por exemplo, sobre a personalidade de Pinóquio e sobre a animação do Grilo Falante, que seria mais difícil de ser realizada devido ao tamanho do personagem. Apesar das complicações, os avanços foram muitos. As pinturas dos backgrounds ganharam mais cores e até mesmo chuva de verdade foi incorporada ao filme [4].
Meses depois do estouro da Segunda Guerra Mundial, em 1940, estreou então Pinóquio. Enquanto a história do boneco que se transforma em menino era feita, Bambi (1942) e Fantasia (1940) eram planejados por Disney. Com isso, ele e sua equipe se mudariam para um estúdio maior em Burbank, no estado da Califórnia, para dar conta da produção que viria no futuro. Os anos seguintes seriam maus economicamente, mas Disney não recuaria de seu plano artístico.
A Era de Ouro é marcada pelas grandes experimentações da Disney. Branca de Neve e os Sete Anões iniciou o cinema de animação, Pinóquio trouxe soluções técnicas revolucionárias e o filme seguinte transformaria a relação entre música e imagem para sempre. Tal projeto do estúdio era Fantasia. A faísca que iniciou este filme foi a necessidade de trazer Mickey de volta aos holofotes. Sua fama estava sendo ultrapassada pelo Pato Donald, e então, Disney decidiu realizar o curta Aprendiz de Feiticeiro com o ratinho no comando. Entretanto, o que era pra ser apenas mais um curta tornou-se a mistura de cinema com música clássica.
Com este filme, Disney poderia, então, agradar a comunidade intelectual, o que seria um bônus, já que para ele o mais importante era a aceitação do público. Fantasia tem seus méritos e pode ser considerado um filme à frente de seu tempo. Um de seus grandes frutos foi o avanço na tecnologia sonora, que anteciparia características do que viria a ser o som Dolby Surround [5], hoje ,tido como padrão internacional de qualidade. Entretanto, a produção do filme fora iniciada com a guerra se aproximando cada vez mais dos Estados Unidos, o que fez com que o filme não tivesse a mesma coerência de Branca de Neve e os Sete Anões e Pinóquio. Já os dois últimos filmes da Disney dentro da Era de Ouro, Dumbo (1941) e Bambi (1942), sofreriam diretamente as consequências dos acontecimentos mundiais em curso.
Dumbo foi feito com orçamento baixo para recuperar um pouco do dinheiro gasto com Pinóquio e Fantasia, que apesar do sucesso não geraram tanta renda quanto esperado. Neste novo lançamento, as experimentações foram menores para evitar custos, de modo que o filme acaba por retornar um pouco à atmosfera dos cartoons, sem exigir muito de si mesmo. Apesar disso, o filme foi bem aceito pelo público e gerou receita razoável para o estúdio. Com o passar dos meses, a situação econômica piorava cada vez mais e aos poucos Disney viu alguns de seus animadores terem que se despedir para lutar na guerra. Nessa época, a Disney lançaria o filme que encerraria a Era de Ouro: Bambi.
A ideia de Bambi já existia desde 1937, mesmo antes do lançamento de Branca de Neve e os Sete Anões. Entretanto, por conta de impasses financeiros, o filme era sempre adiado, pois Disney se negava a mudar o conceito da obra para diminuir seus custos de modo a adequar-se à situação que o estúdio vivia. O longa seria caro de um jeito ou de outro e assim a produção só voltou à ativa com a finalização de Fantasia. O grande trunfo do novo lançamento da Disney era a busca pelo naturalismo.
Os animais foram exaustivamente estudados pelos animadores, inclusive dentro do estúdio, quando alguns veados eram trazidos para servirem de modelos. O filme foi lançado em 1942 e apesar de todo seu esplendor não gerou o retorno merecido. Contudo, Bambi foi um filme importante, pois com seus quatro predecessores possibilitou a construção de um catálogo de técnicas apuradas para o estúdio. Após os cinco filmes da Era de Ouro, a Disney estava preparada para grandes realizações, pois havia se desenvolvido muito. Em cada filme, algum aspecto era melhorado ou explorado por novos ângulos, fazendo com que a Era de Ouro pudesse ser percebida como um conjunto de clássicos em que a presença de Walt Disney é clara.
Bambi marcou o fim de uma era. A guerra já se instalara por toda a Europa e o envolvimento dos Estados Unidos era pleno. Com isso, os recursos diminuíam e as condições de trabalho mudavam. O estúdio certamente teria que se readequar e era perceptível que o grande frenesi havia passado. Camundongos, a primeira parte do nosso especial Eras da Disney fica por aqui. Semana que vem vamos conhecer a Era da Guerra!
Notas do Autor:
[1] Fãs do estúdio e de animação como um todo discutem em fóruns online sobre subdivisões do cânon, revelando que há muitas nuances sobre o mesmo tópico. Uma das discussões está disponível nesse artigo.
[2] Em 2015 a Disney lançou uma coleção de cartões postais intitulada The Art of Disney: The Renaissance and Beyond (1989-2014). Tal lançamento indica a postura do estúdio em aceitar pelo menos uma das eras, a Renasçenca, iniciada em 1989 com A Pequena Sereia.
[3] A série completa conta com 75 curtas animados lançados entre 1929 e 1939.
[4] Filmagens de chuva foram adicionadas ao fundo das células pintadas manualmente, fazendo com que a chuva do filme fosse ainda mais real.
[5] Em uma das cenas de Fantasia, Disney disse aos engenheiros de som que seria interessante que a trilha pudesse ser ouvida em todos os cantos da plateia. O desenvolvimentos dessa ideia resultaria futuramente no som surround, que é aquele que envolve completamente a sala de cinema.