No início de sua trajetória na 7ª arte, a animação ainda não parecia ser um gênero muito promissor. Os primeiros desenhos animados eram carentes de uma maior sofisticação técnica e artística e geralmente apresentavam apenas uma série de “gags” (piadas) visuais, sem a presença de histórias e personagens um pouco mais elaboradas. Isso iria mudar com o surgimento da Disney. Bros, pequeno estúdio de animação fundado por um certo Walt Disney em parceria com seu irmão Roy Disney, que em pouco tempo se tornou bastante conhecido por todos pelos seus grandes avanços trazidos às animações, tais como personagens e cenários melhor desenhados e a introdução de elementos sonoros e cores.
Mas a Disney. Bros, futura Walt Disney Pictures, também buscava trabalhar narrativas mais aprofundadas e personagens de maior personalidade e simpatia com o público, de modo a elevar a animação ao mesmo nível de excelência presente nos filmes live-action. Disposto a atingir esses objetivos, Walt Disney contou com um vasto time de grandes artistas e profissionais, cujos trabalhos fizeram com que os desenhos animados evoluíssem drasticamente, em termos narrativos, artísticos e técnicos, ao longo dos diversos curtas e longas-metragem produzidos pelo estúdio com o passar das décadas. Um desses animadores se destacou por apresentar não só um intenso arco dramático em seus trabalhos, mas também um grande refinamento artístico nos mesmos, a ponto de ser considerado hoje o “Michelangelo da Animação”. No quarto especial de nossa série iremos contar sua história. A história de um homem perfeccionista e apaixonado pelo que fazia. A história de um artista nato que se entregava de corpo e alma às suas criações. A história de Vladimir “Bill” Tytla.
Vladimir (Bill) Peter Tytla nasceu em 25 de Outubro de 1904 na cidade de Yonkers, do estado de New York. Filho de pai ucraniano e mãe polonesa, Tytla teve uma infância difícil devido a constante falta de dinheiro e foi na arte que ele encontrou o seu principal refúgio. Em seus tempos de juventude, Bill costumava copiar os quadrinhos dos livros e desenhar cenas em papéis de açougueiros, sendo que os desenhos também foram uma forma de ele passar o tempo quando ficou de cama por um ano devido a uma doença. Além disso, seus pais, ao notarem os grandes talentos do filho, igualmente o estimulavam a ingressar no campo das artes.
Aos 09 de idade, Tytla, em companhia de seu tio, visitou a cidade de Manhattan para assistir, em um teatro vaudeville, o curta-metragem animado “Gertie the Dinosaur“, de Winsor McCay. Sobre este episódio, a futura esposa do mestre, Adrienne le Clerc, lembraria: “Ele nunca esqueceu isso. Mesmo anos depois ele ainda falava do curta com a mesma admiração e reverência que deve ter sentido em seu impacto original. Não havia nenhuma dúvida que o dinossauro Gertie tinha mudado sua vida para sempre”.
Pôster de “Gertie the Dinosaur”, renomado curta de animação que mudaria a vida de Bill Tytla para sempre
Ao entrar para a adolescência, Tytla, levando mais a sério os seus dotes artísticos, começou a frequentar várias e várias aulas de arte formal, as quais ele praticava durante horas. Seus estudos eram tão intensos que Bill Tytla, após cursar um ano no Ensino Médio, decidiu abandonar a escola para dedicar-se exclusivamente a eles. E claro, tal atitude inadequada quase o mandou direto a um reformatório, mas os juízes ficaram tão impressionados com seus trabalhos que o deixaram ir embora.
Após ter se retirado do colegial, Tytla tornou-se ainda mais severo com sua educação artística formal e na mesma época ingressou para a New York Evening School of Industrial Design. Em 1920, com apenas 16 anos, Tytla enfim conseguiu seu primeiro emprego em um estúdio de animação! Tratava-se do departamento de desenhos animados da Paramount Studios, em Nova York, onde seu trabalho era muito simples: fornecer, ajustar e colocar as letras que formavam os cartões de título (ou intertítulos) dos filmes produzidos (tanto que seu apelido no estúdio era “Tytla, o Titulador”).
Essa situação mudaria quando o futuro mestre teve suas primeiras experiências efetivas com o ramo ao ser contratado como animador principal na série de curtas “Mutt e Jeff”, produzida no estúdio do cartunista Roul Barré, em Bronx. Em 1922, Tytla trabalhou na animação “Joy and Bloom Phable” de John Terry, cujo irmão, Paul Terry, fundador da TerryToons, convidou o nosso artista a fazer parte da equipe de produção da série “Fábulas de Esopo” (neste período, o mestre conheceria futuros colegas de trabalho, como Ben Sharpesteen, Norman Ferguson, Ted Sears e Hicks Lokey).
Logo da TerryToons
Paul Terry
Durante sua estadia na TerryToons, Tytla logo se destacou dentre todos os animadores por ser capaz de fazer inúmeros desenhos de qualidade em um ritmo muito rápido. Após três anos, ele já ganhava um ótimo salário, com o qual ajudava sua família. “Anos mais tarde Paul Terry me disse que teria dado mais dinheiro para Bill caso ele lhe pedisse”, lembrou o pioneiro I. Klein. “Bill Tytla foi um animador brilhante desde o início de sua carreira.”.
No entanto, em uma época onde as animações ainda não exigiam grandes habilidades com o desenho, Tytla queria mais. Seu enorme interesse pelo campo das belas-artes ainda se mantinha intacto e ele agora sonhava em aprender e trabalhar com os grandes mestres para, enfim, se tornar um deles. O jovem artista retomou os estudos no Art Students League, onde teve aulas com o renomado ilustrador Boardman Robinson. “Ouvi dizer que era realmente um cara durão”, refletiu Bill. “Ele olhava como um homem e falava como um, e tinha um senso de humor muito sutil. Ele espiou um desenho após o outro, tipo casualmente, virou-se para mim e disse: “Eles parecem talentosos, não é?”. Então ele começou a trabalhar em mim. Insistia que eu desenhasse com um lápis bem apontado, portanto tive que desenhar sem nenhuma técnica. Ele também reconheceu que eu tendia a desenhar o lado chamativo e pensei que isso ajudaria.”.
Boardman Robinson
Em 1929, Tytla, em companhia de alguns amigos de escola, viajou para a Europa onde teve extensas aulas de pintura e escultura. Foi nessa estadia de dezoito meses que ele enfim pôde ter acesso às obras primas dos grandes mestres europeus, especialmente as do artista Pieter Bruegel, seu favorito de todos os tempos. Tytla visitava constantemente um museu da cidade de Viena, Áustria, só para estudar os quadros do pintor, obras estas que exerceriam uma enorme influência nos posteriores trabalhos do artista como animador. Ele diria mais tarde para John Culhane: “Foi a minha epifania. Eu fiquei em Viena e retornava e retornava para lá. Eu sabia que era isso o que eu queria fazer, mas eu queria fazê-los mover.”. Já as aulas de escultura, sancionadas por Charles Despiau (discípulo do grande Auguste Rodin), também tiveram grande peso nas futuras criações de Tytla, especificamente na forte tridimensionalidade vista no desenho de suas personagens.
Entretanto, o jovem aprendiz era um perfeccionista nato que sempre exigia o máximo de seu próprio talento e foi esse mesmo perfeccionismo que interferiu em sua carreira como artista plástico. Ao se deparar com tantas obras-primas, Tytla chegou à conclusão de que jamais conseguiria alcançar o nível artístico dos grandes mestres. Frustrado com suas supostas limitações criativas, ele destruiu grande parte do seu trabalho e retornou à América em meio aos turbulentos anos 1930.
Auto-retrato de Vladimir Bill Tytla – uma das únicas obras do artista que sobreviveram após sua viagem na Europa, quando ele destruiu grande parte do seu trabalho.
Ao voltar para os EUA, Tytla já possuía um outro plano em mente: usar os seus vastos conhecimentos artísticos para se tornar o maior de todos os animadores. A animação já havia sofrido grandes avanços desde que ele abandonara a TerryToons em favor de seus estudos. Agora, os desenhos animados eram sonoros e os estúdios exigiam profissionais cada vez mais talentosos. Ou seja, era o cenário perfeito para que o futuro mestre enfim retornasse ao ramo com toda a sua criatividade pedindo para se libertar!
Tytla foi novamente contratado para trabalhar na TerryToons e, nessa altura do campeonato, ele já se encontrava em um nível totalmente diferente do visto anos atrás. Na verdade, tal excelência era superior até demais em relação à baixa qualidade das produções do estúdio, tanto que Bill Tytla diria mais tarde: “Eles estavam fazendo um punhado de dinheiro, mas nós tivemos que contratar nossos próprios modelos e, claro, eles sequer consideraram um instrutor. Os animadores principais não podiam fazer muito se fossem tirados dos gatos e ratos. Eles não podiam animar meninas, nós tivemos que fazer. Ou se tivesse uma sequência de dança, você deveria ir a uma escola de dança e tentar entender a rotina dos casais. Era puramente acidental que um ou dois dos que gostavam de desenhar houvessem frequentado a escola de arte. Finalmente, nós tivemos que desistir de nossos modelos. Os companheiros fizeram piadas das garotas que posavam para nós. Eles diziam ‘Qual o motivo de ter ido a uma escola de arte? Você está desenhando, não?’ “. Foi na TerryToons que o mestre conheceu o animador Art Babbit, que logo se tornou o seu melhor amigo e companheiro de quarto.
Mas você deve estar se perguntando: ok, foram trabalhos, séries de curtas, estudos, viagens, desilusões, outros trabalhos… Mas e a Disney? Quando ela entra nessa história? Oras, a Walt Disney Pictures ganhava mais e mais prestígio na época, e Babbit, à procura de trabalhos desafiadores e de melhores condições, decidiu migrar para a casa de Mickey Mouse em 1932 e durante dois anos tentou convencer o amigo Bill Tytla a se juntar a ele no estúdio. Contudo, o artista sempre recusava o convite, alegando que não queria deixar sua família e abrir mão do salário da TerryToons que garantia sua estabilidade financeira (afinal de contas, era preciso sobreviver aos tempos difíceis da Grande Depressão).
Mas não era só Babbit que tentava atrair Tytla para a Disney. Na época, Walt Disney estava à procura de mais talentos com os quais pudesse contar, e os trabalhos únicos de Tytla no estúdio de Paul Terry chamaram a atenção do cineasta, a ponto de Disney conseguir identificar as cenas que o animador havia desenhado. Mas convencer o velho cossaco a fazer parte da equipe foi uma tarefa nem um pouco fácil. Em 1933, Roy Disney, em viagem a Nova York, convidou Tytla para um jantar e tentou convencê-lo a visitar a Califórnia afim de conhecer as instalações Disney. Entretanto, o mestre mostrou-se inflexível, embora, segundo Roy, “manifestasse desejos de ter a oportunidade de fazer um trabalho melhor” **. Pouco tempo depois, Ben Sharpsteen, o encarregado de recrutar novos animadores, entrou em contato com Tytla, novamente o convidando a entrar no estúdio com um pagamento de $100 dólares semanais, proposta que o artista novamente recusou. Mas os Disney não desistiriam tão fácil! A partir de então, Roy, em todas as suas viagens a Nova York, convidava novamente Tytla para outro jantar onde o tentava convencer, sem sucesso, a ingressar no estúdio (o que o animador descrevia como um “romance intermitente” **).
Mas foi em Novembro de 1934 que Vladimir Bill Tytla finalmente cedeu aos inúmeros convites e pedidos e viajou para Hollywood afim de conhecer a tão comentada, e persistente, Walt Disney Pictures. E não é que ele gostou do que viu? Embora o salário oferecido pelo estúdio fosse menor do que ele recebia na TerryToons, Tytla enfim aceitou o emprego, tamanho o interesse que a casa de Mickey Mouse lhe despertou (ele recordaria anos mais tarde: “Jesus, eu fiquei impressionado com o estúdio Disney!”).
Seus primeiros personagens animados na Disney (trabalhos estes feitos a caráter de estágio) foram os “doces anjinhos” e os “doces diabinhos” da Silly Symphony “O Carnaval dos Cookies” (“The Cookie Carnaval”), mais a Claribela em “A Brigada de Incêndio do Mickey” (“Mickey’s Fire Brigade”), ambos os curtas lançados em 1935. Mas foi com a animação dos galos valentões em “O Desfile do Galo” (“Cock O’ the Walk” – 1935) que Tytla enfim começou a se destacar no estúdio. Neste curta-metragem, o mestre já mostrava a todos o quão grande era seu potencial ao lidar magistralmente com o peso, a sincronia, a fluidez dos movimentos e a personalidade de suas personagens.
Seu trabalho em “O Desfile do Galo” recebeu diversos elogios de vários integrantes do estúdio, incluindo o próprio Walt Disney que até lhe escreveu: “Sua animação no curta foi um grande passo a frente. Algo foi iniciado e é o que nós procuramos. Isto é, fazer as coisas que os seres humanos são incapazes de fazer.”. Zach Schwartz também diria mais tarde: “Bill Tytla foi o maior desenhista que eu já conheci – em animação ou em qualquer outro lugar. Ele não era um cartunista, era um escultor e sua obra teve um enorme poder e percepção de forma”. Tantas congratulações acabaram resultando em um aumento de salário e promessas de futuros trabalhos de maior relevo.
Trabalhos de Bill Tytla (alguns disponíveis para ampliação):
“O Desfile do Galo” – Silly Symphony de 1935
http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=Md_NeAVW_Tk
“O primeiro dever do desenho animado é não retratar ou copiar a ação real ou as coisas como elas realmente acontecem, mas sim fazer uma caricatura da vida e da ação. A questão é que você não está meramente desenhando com um lápis, mas também proporciona peso em suas formas e faz qualquer coisa possível com esse peso para obter uma sensação. É uma luta para mim e eu estou consciente disso o tempo todo. Você tem de expressar ou compelir ou definir os desenhos animados de modo que o olho sempre os siga. Muitas vezes deve fazer coisas que poderiam ser chamadas de traços ruins, afim de realçar e deflorar o desenho. Na tela parece ser bom, mas um desenho em si não significa nada. É apenas uma continuação de um grande todo. E você deve forçar e realçar alguns traçados para obter um determinado humor ou uma reação de diâmetro. Se você sempre tentar manter o traço perfeito, não obterá essa mesma sensação de diâmetro. Vai ficar sem sabor. Você pode forçar ou realçar o desenho, jogá-lo fora e faze-lo de novo.Você pode torcer uma sobrancelha ou uma boca, pode fazer algo com o ombro de uma pequena personagem e burlá-la, mas isto é um fluxo contínuo e ela sempre voltará à sua forma original.” ~ Vladimir Bill Tytla
Logo, Tytla e seu amigo Babbit, tornaram-se um dos artistas mais bem pagos e prestigiados do estúdio. Ambos puderam novamente dividir uma casa – uma residência completa na Rua Tuxedo Terrace, com direito a uma empregada doméstica e tudo o mais. Mas é claro que Tytla não deixou de ajudar sua família; ainda lhe enviava parte de suas economias e inclusive a presenteou com 150 hectares (cerca de 607.000 m ²) de terras agrícolas na cidade East Lyme, do estado de Connecticut .
Determinado a obter todos os conhecimentos possíveis para atingir a almejada perfeição, o mestre passou a frequentar as aulas de “Análise de Ação” dirigidas à equipe de animadores da Walt Disney Pictures. Nestes cursos, os artistas assistiam palestras sobre construção de personagem, animação, layout, cenário, técnica e direção **. Os estudos duravam cerca de oito horas diárias e eram sancionados por Don Graham (e, posteriormente, pelo próprio Walt Disney). Em relação a esta experiência, Tytla declarou: “Eu me debrucei sobre estes cursos como uma tonelada de tijolos! Foi realmente um verdadeiro salva-vidas! Eu estava no período entre o antigo e o novo estágio de animação. Executar filmes em câmera lenta era como levantar uma cortina para mim. […] Além de toda a formação da escola de arte, tudo isso influenciou em muito a minha abordagem ao trabalho.”.
A propósito, o principal objetivo destas aulas era fazer com que todos estivessem completamente instruídos e preparados para o grande desafio que os aguardava em breve. A produção de um longa-metragem animado.
“Branca de Neve e os Sete Anões” (“Snow White and the Seven Dwarfs”, de 1937), tido na época como “A loucura de Disney”, começava a ser produzido e é claro que Vladimir Bill Tytla não poderia ter ficado de fora dessa, tamanho o status que ele já havia ganhado no estúdio (para se ter uma ideia de seu prestígio, após o expediente, alguns animadores vasculhavam a lixeira da sala de Tytla em busca de desenhos e rascunhos descartados pelo artista. **). Ele foi um dos primeiros membros da equipe contratados para trabalhar no projeto, onde, juntamente com o animador Fred Moore, desenhou, animou e definiu a personalidade de cada um dos sete anões, especialmente Mestre e Zangado, pelos quais ficou mais conhecido (Tytla e Moore também foram responsáveis por grande parte do design do filme).
Vladimir Bill Tytla era conhecido por transferir toda a sua ferocidade para seus trabalhos, animando “do seu interior para fora no papel”. Segundo o animador Eric Larson, Tytla usava de uma grande intensidade e sinceridade em suas animações. “Quando ele encenava uma cena em seu quarto, eu pensava que as paredes iam cair! Ele era um feixe de nervos e explodiu em sua vida normal”. Grim Natwick, o famoso desenhista de Betty Boop, também diria: “Bill se curvava sobre sua mesa de desenho como um gigantesco abutre protegendo um ninho cheio de ovos de ouro. Era um trabalhador intenso – ávido, nervoso, absorto.” **. O mestre dedicava tanta concentração e paixão aos desenhos que chegava a furar o papel de animação com os lápis **. E com os sete anões não foi diferente. Perfeccionista como ele só, Tytla fazia questão de que, mesmo em uma cena repleta de personagens, cada anão deveria agir de acordo com suas próprias características.
Por sinal, determinar a personalidade de cada um dos anões foi um verdadeiro desafio para os animadores. Afinal, como fazer com que sete homenzinhos, de traços básicos tão parecidos, tivessem cada um uma característica psicológica ou emocional própria? Conforme avisaria o diretor Dave Hand na época “Há sete deles e, de fato, é difícil dominar cada um” **. “Eu nunca tive um problema como esse antes” – declarou Tytla – “Tivemos que lidar com um grupo de personagens bastante parecidos mas, ao mesmo tempo, diferentes entre si.”. Para esta árdua missão foram precisos diversos argumentos, discussões, reuniões, pesquisas para os nomes, encenações, rascunhos, testes e até o uso de modelos reais (um anão de verdade chamado Major George foi chamado para o estúdio, assim como o ator Eddie Collins que serviu de inspiração para Dunga).
Em relação a Zangado, Tytla foi responsável pela animação de duas principais sequências da personagem: quando os demais anões dão um banho no irmão ranzinza e aquela onde ele recebe um beijo forçado de Branca de Neve e, aos poucos, vai cedendo aos encantos da princesa até que, subitamente, recupera a compostura.
Por esses exemplos, já podemos notar o quão versátil era o talento do artista. Ao mesmo tempo em que animava sequências cômicas que se baseavam apenas em uma série de “gags”, ele também era capaz de visualizar os sentimentos mais profundos de suas personagens apenas com o uso da linguagem corporal e de simples gestos, como no caso de Zangado que, após ser beijado por Branca de Neve, gradativamente substitui sua carranca por uma expressão doce e mansa, chegando a sorrir e arrancar um suspiro apaixonado. Aqui vemos o quão sensível e mole pode ser o coração do ranzinza, o que permite desse modo um envolvimento maior por parte da plateia com a personagem (repare também que Zangado é um dos únicos anões que cai no choro ao velar o corpo de Branca de Neve na cena que se segue após a morte da Rainha).
O destaque igualmente fica para a maneira como Tytla consegue captar a personalidade de cada um dos anões na sequência do banho, mesmo que a canção reflita o quanto os irmãos são parecidos. “Tytla de fato tinha uma sensação intuitiva do que um personagem devia fazer”, declarou o animador Frank Thomas. “A abordagem de Bill da animação é uma confirmação de tudo que os instrutores tem tentado fazer por aqui em quatro anos de aulas de desenho” – analisou na época Don Graham – “É a primeira vez que esses princípios se mostram evidentes em animação e ele, por sua vez, é o primeiro a pensar em termos de forças do que de formas. De fato, o trabalho de Tytla tem sido uma revelação.”
Teste de Animação (Anões):
Esses resultados foram apenas um dos triunfos obtidos pelos artistas Disney em “Branca de Neve e os Sete Anões”. No entanto, embora o filme não transpareça tal fato, todos se sentiam bastante inseguros e ansiosos. Segundo declaração de Tytla: “Todos pisavam em ovos em relação a isso. Não sabíamos o que esperar. Estávamos cheios de todos os tipos de emoções.”**. Ele também diria em uma das aulas de “Análise de Ação”: “Há muita coisa nos curtas com que se pode conviver, mas não neste filme e Walt não deixará aquela pobre coisa passar despercebida…”**.
Felizmente, tal como no conto de fadas, esta história também teve um final feliz! Tanto trabalho, esforço e dedicação foram merecidamente recompensados com o enorme sucesso que o longa causou entre o público e a crítica ao ser lançado em Dezembro de 1937. Já em sua estreia original nos cinemas, “Branca de Neve e os Sete Anões” tornou-se um verdadeiro Clássico da 7ª arte e até hoje é admirado por várias gerações.
“Vocês companheiros, provavelmente, devem pensar que, só porque estão fazendo vários Donald’s e Mickey’s, tudo que devem fazer é apenas aprender o suficiente para desenhar um bom Donald ou um bom Mickey. Mas o engraçado é que quanto mais você souber sobre o desenho mais habilmente você manipulará o Donald e outras personagens. E, passados cinco anos, você não vai estar mais desenhando Donald’s de qualquer maneira. O tipo de coisa que temos feito ultimamente tem sido uma grande mudança em relação ao que fazíamos antes e será, por sua vez, bastante diferente do que está prestes a acontecer. Vocês homens que haviam animado antes deverão concordar que houve uma pequena mudança a partir destes últimos trabalhos. Hoje, não estamos apenas tentando algo – nós agora estamos realmente à beira de uma coisa nova. Será preciso muito trabalho com desenho – nada soberbo, superficial ou bonitinho mas algo sólido e bem desenhado – para conseguir esses resultados, que deverão ser atingidos por pessoas que tenham controle absoluto no que estão tentando fazer. Esses animadores não terão apenas que desenhar, e não importa o quanto eles virem, distorçam, estapeiem ou aumentem, aquela figura ainda terá que ter peso. Esses companheiros terão que ser capazes de transmitir uma certa sensação ou emoção – pois isso é tudo que estamos tentando fazer nestes desenhos animados.” ~ Vladimir Bill Tytla – discurso feito em um dos cursos de ‘Análise de Ação’. Ele sabia que as coisas jamais voltariam a ser as mesmas.
E em 21 de Abril de 1938, o velho cossaco foi fisgado! O nome dela era Adrienne Le Clerc, uma bela e vibrante atriz e modelo. Aos 22 anos ela posou para alguns animadores Disney em uma das aulas de Donald Graham. E adivinhe quem estava na classe? Sim! Nosso amigo Bill Tytla, cujo coração duro não pôde resistir por muito tempo às investidas do amor. Ambos possuíam o mesmo temperamento vulcânico, embora Adrienne admitisse que “meu copo estava meio cheio com entusiasmo, o dele estava muitas vezes meio-vazio com as próprias dúvidas. Entretanto, nós éramos yin e yang, definitivamente.”. Durante os trinta anos de casamento, ela foi um verdadeiro porto seguro para Tytla que sempre buscava na esposa apoio e inspiração (contudo, Adrienne declarou que quando o marido ficava completamente absorto no trabalho, tinha que ficar nua na porta dele para chamar a sua atenção.). Dez meses após o matrimônio, eles tiveram o seu primeiro filho, Peter.
Após o grande sucesso de “Branca de Neve e os Sete Anões”, as coisas não poderiam estar melhores para Tytla! Além de casado e pai, agora ele ganhava cerca de $300 dólares por semana, e estava preparado para enfrentar novos desafios em seu trabalho. Em 1938, ele animou o gigante estúpido do curta-metragem “O Pequeno Alfaiate Valente” (“Brave Little Tailor”), adaptação do conto de fadas homônimo dos Irmãos Grimm estrelada por Mickey Mouse. E, como diria os animadores Frank Thomas e Ollie Johnston, a personagem “tornou-se o modelo de todos os gigantes para a indústria de “gags” características”.
“O Pequeno Alfaiate Valente” – Curta-metragem de 1938:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=vvcxbgM2qnA
E no início de 1940, a Disney lançava o seu segundo longa-metragem animado: “Pinóquio” (“Pinocchio”), adaptação da obra homônima do escritor italiano Carlo Collodi, onde Tytla seria responsável pela animação do cruel Stromboli, tido até hoje como um dos antagonistas mais assustadores e tridimensionais já vistos em um Clássico do estúdio. Stromboli na verdade não é um vilão tão forte no livro original (ele chega a libertar Pinóquio e ainda lhe dá cinco moedas de ouro); coube à Disney (e Tytla) torná-lo o homem ganancioso, sombrio e estourado que vemos na tela.
Segundo os animadores Frank Thomas e Ollie Johnston (sim, eles de novo!), “Bill era musculoso, nervoso e sensível, com um tremendo ego. Tudo tinha “sentimento” com Bill. Tudo o que ele animava tinha seus sentimentos mais profundos expressados através de uma atuação muito forte. Ele entrou em Stromboli, ele era Stromboli e viveu aquele papel!”. Contudo, ao mesmo tempo o vilão se tornou um verdadeiro desafio para as ambições pessoais do mestre. “Eu dei-lhe tudo o que eu tinha.” – lembrou Tytla – “Todos diziam ‘Ótimo’ ou ‘Não é preciso fazer mais nada’. E finalmente, chegou o momento de Walt vê-lo. Ele foi subjugado e disse: ‘Esta foi uma cena infeliz, mas se alguma outra pessoa a tivesse animado, eu até iria aprová-la. No entanto, eu esperava algo diferente vindo de Bill!’. Levei um par de semanas antes que pudesse trabalhar de novo. Fiquei arrasado. Mas um dia, peguei meu lápis e comecei a trabalhar novamente, mas desta vez através de uma outra forma. Foi como se algo tivesse me atingido para que eu começasse tudo de novo. E desta vez, Walt disse: ‘Ótimo! Era exatamente isso o que eu estava esperando!’. Ele nunca me explicou o que havia de errado antes. Era como se, por alguma maneira mágica, ele assim soubesse.”
Teste de Animação (Stromboli):
Para o desenho e movimento do manipulador de marionetes, o mestre usou o animador T. Hee como modelo de referência e, é claro, de todos os conhecimentos adquiridos em tantos anos de experiências e trabalhos. Ollie Johnston diria: “Durante esse tempo, o estúdio tinha um avanço artístico após o outro. Nós vimos o que Tytla estava fazendo com Stromboli e pensamos, ‘como isso é grandioso! Nesse ritmo, quem sabe o que a Disney Animation vai fazer daqui a alguns anos? ’ Claro que depois da Idade de Ouro ainda fizemos mais algumas coisas boas, mas era mais ou menos um refinamento do que já tinha sido feito.”. Já Bill Shull, o assistente do mestre na época, comentou: “Era como se eu tivesse recebido um pontapé quando Tytla distorcia algum traçado. Esticá-lo, por exemplo, parecia bobeira. Quando você olhava o desenho, podia jurar que não signifcava nada, mas, na tela, essas coisas pareciam unir a cena. “.
O resultado foi, novamente, uma personagem bastante versátil, que alterna entre momentos bem humorados e outros em que assume um ar perigoso e ameaçador – tudo auxiliado por seus movimentos ousados e expressões próprias. O crítico de animação Charles Solomon, impressionado com a personagem, até escreveu na época: “Quando Stromboli começa a rebolar dizendo “Cons-tan-ti-no-pla” ele é realmente engraçado, mas logo depois ele fala sobre atirar Pinóquio no fogo. Yee-eek! Você acredita nele como sendo bobo e ao mesmo tempo assustador, e eu acho que todos sabemos que pessoas com um temperamento como esse podem explodir desse modo…”.
T.Hee como modelo de referência para Stromboli
Mas o manipulador de marionetes tinha sido apenas uma prévia do que ainda estava por vir… Walt Disney agora desenvolvia o seu mais novo, ambicioso e ousado projeto. Se “Branca de Neve e os Sete Anões” e “Pinóquio” já haviam sido grandes marcos, este outro longa mudaria a história do cinema para todo o sempre. Só poderíamos estar falando do célebre “filme-concerto”, “Fantasia” (1940). E desta vez, Tytla assumiu a difícil tarefa de animar um vilão muito mais complexo, sombrio e intenso que Stromboli ou o gigante, o qual o cossaco utilizaria todas as suas habilidades artísticas e dramáticas assim como seu feroz e apaixonado talento. Tal personagem nada mais era do que a própria personificação do mal: o demônio.
Vladimir Bill Tytla foi responsável pela animação de Chernabog, o anjo das trevas que desperta nas noites de Halloween no topo da Montanha Deserta para torturar todos os maus espíritos e almas inquietas que estiverem ao seu alcance – ao som da violenta composição de Modest Mussorgsky, “Uma Noite na Montanha Deserta” (“Night on Bald Mountain”). Para o desenho e animação de Chernabog, o estúdio contratou Béla Lugosi (o eterno Drácula) como modelo real da personagem. O ator passou vários dias fazendo “poses malignas” para os animadores, no entanto, Bill Tytla já tinha grande parte da personagem em mente e ainda por cima não gostou da interpretação de Lugosi.
Segundo o animador Wilfred Jackson: “Bill já tinha uma ideia bastante definida do que queria animar antes que chegássemos à fase de ação ao vivo. O ator convocado assumiu que estava lá para dar o seu próprio conceito da personagem. Bill se retirou da sala e me disse ‘Eu não gosto disso. Prefiro quando nós passamos por isso e eu estou indo para animá-lo do meu jeito. Seria bom se você fosse em frente à câmera e fizesse isso por mim.’. Então tirei minha camisa e filmamos um pequeno filme no qual eu interpretava o diabo.”.
Apenas as mãos, os lápis e a mente absorta e perfeccionista de Bill Tytla eram capazes de lidar com vilão tão poderoso e macabro. O animador utilizou-se de grandes cuidados ao desenhar a anatomia de Chernabog e transmitir-lhe toda a dramaticidade e intensidade necessárias para uma pantomima impactante e grandiosa. “Imaginei que eu era tão grande como uma montanha e feito de rocha, mas ainda estava sentindo e me movendo”, ele declarou. “Tytla tinha tamanha conexão com seus trabalhos que ele não estava realmente desenhando.”, explicou George Assa, um dos assistentes do mestre. “Era Bill quem estava vindo à tona. Ele sentia e lutava até conseguir expressar o que estava sentindo. Isso separava a animação dele das outras.”
Chernabog é considerado uma das maiores realizações de Tytla como animador e marca o início do auge de sua carreira. A animação de fato consegue nos transmitir todo o arco dramático pelo qual a personagem passa. Desde o êxtase sentido pelo demônio ao se banhar nas chamas infernais e ter sob seu controle todos os espíritos e almas condenadas até o profundo desespero e a agonia que toma conta dele ao ouvir o som dos primeiros sinos da igreja anunciando a chegada da aurora. “Eu olhava para esse poço sem fundo de onde saiam resmungos e barulhos.”, relembra Robert De Grasse, outro assistente do mestre. “Ele trabalhava por muito tempo e nunca fazia uma pausa. Duvido que sequer sabia que horas eram.”.
Até hoje “Uma Noite na Montanha Deserta” é considerada uma das animações mais tensas, sombrias e adultas da Disney. E, como diria o animador Milt Kahl na década de 80, “nunca mais algo foi tão poderoso como o demônio de Tytla”.
“Foi mencionado que as possibilidades de animação são infinitas. De fato, ela é tudo isso, e ainda muito simples – mas tente fazê-la! Não há nada que você não possa fazer nela no que diz respeito a sua composição. Não há um caricaturista neste país com mais liberdade que um animador daqui em torcer e traçar suas linhas. Mas não posso contar como fazê-la, desejaria poder. Para mim, continua um mistério como antes. Às vezes, entendo, às vezes, não. Gostaria de saber, para fazer com mais frequência. O problema não se resume a um único fator. Animação não se trata apenas de tempo ou personagens bem desenhadas, mas sim de uma soma de todos os fatores nomeados. Não importa o que as más línguas falem – seja a forma, os personagens bem-desenhados , tempo, ou o espaçamento – animação é uma mistura de todas essas coisas, e não qualquer uma delas. O que você como animador deve se interessar é transmitir um sentimento que terá de acontecer em um momento específico, e deve fazer qualquer coisa para obtê-lo. Se tiver que apagar os traçados milhares de vezes, é irrelevante. A animação, como em qualquer uma das artes, gira em torno de sua sensibilidade e vitalidade no momento em que você começa a trabalhá-la.” ~ Vladimir Bill Tytla
E uma curiosidade: em “Fantasia”, Bill Tytla também animou Yen Sid, o mestre de Mickey Mouse do segmento “O Aprendiz de Feiticeiro”. E para a animação do poderoso mago, o artista se inspirou em ninguém menos que Walt Disney, chegando a emprestar à personagem uma das expressões mais famosas, e temidas, de Walt – sua sobrancelha levantada quando via que algo não estava indo muito bem. O próprio nome Yen Sid nada mais é do que Disney escrito ao contrário.
Após ter animado tantos vilões “peso-pesados”, Vladimir Bill Tytla foi designado, conforme seu pedido, para a animação de todos os elefantes do Clássico “Dumbo” (1941), incluindo o encantador protagonista homônimo. Este, sem dúvidas, é um dos trabalhos mais conhecidos e aclamados do grande mestre, sendo até considerado por muitos o ponto máximo de sua carreira. Um dos maiores méritos de Tytla no longa é a forma como ele consegue expressar, de maneira sutil, o imenso carinho e amor que existe entre Dumbo e sua mãe, mesmo sem a presença de diálogos (Sra. Jumbo só possui uma linha de fala em todo o filme e Dumbo é completamente mudo). Para tamanho feito, ele se inspirou em suas próprias experiências como pai assim como em seus sentimentos pelo filho de dois anos, Peter, o qual também serviu de referência para os gestos e expressões do elefantinho.
“Eu não sei absolutamente nada sobre elefantes”, Tytla declarou. “Eu estava pensando em termos de seres humanos e vi uma chance de fazer uma personagem sem o uso de teatro barato. A maioria das expressões e maneirismos eu recebi do meu próprio filho. Não há nada de teatral sobre um garoto de dois anos de idade. Eles são reais e sinceros, como quando quase molham as calças de empolgação quando você chega em casa à noite.”. De fato, os principais objetivos do artista em “Dumbo” eram tentar captar a personalidade de uma criança e transmiti-la ao pequeno elefante, de modo que as cenas do protagonista interagindo com a mãe ou com outras personagens soassem verdadeiras e funcionassem melhor. Se ele conseguiu o que almejava? A resposta você confere abaixo:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=CgJitrHtIJM
Peter Tytla – foi em seu filho que Bill Tytla se inspirou para a animação de Dumbo
Bill Tytla foi responsável pela animação de duas principais, e belíssimas, sequências do filme. A primeira é a já apresentada cena onde o elefantinho é banhado pela Sra. Jumbo e ainda brinca de esconde-esconde entre as pernas dela. Já a segunda trata-se da famosa sequência em que Dumbo visita sua mãe na prisão e é ninado por ela ao som da canção “Baby Mine”. Ambas as cenas permitem que o público se envolva diretamente com a profunda relação que existe entre os dois, especialmente esta última que demonstra o afeto que um sente pelo outro através da felicidade de ambos ao unirem suas trombas e da dificuldade que possuem em se separarem de novo. Trata-se de uma animação poderosa, profunda e tocante, capaz de arrancar as lágrimas de qualquer marmanjo.
O destaque também fica para o modo como Dumbo consegue expressar a todos o que está sentindo mesmo sem dizer uma única palavra em toda a trama. O animador Frank Thomas diria: “Tytla estava dizendo ao público exatamente o que queria dizer a eles. Ele não estava mostrando o quão esperto era ou quanto sabia, mas estava fazendo o que era certo para a imagem. Sua animação só me constrange.”. Chega a ser até irônico por se tratarem de personagens completamente diferentes, mas foi com o mais terrível dos demônios e o mais encantador dos elefantes que Vladimir Bill Tytla enfim alcançava a perfeição.
http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=LV5DOPOYU98
Chega a ser até, digamos, “natural” que um artista, após conquistar o auge de seu talento, comece a entrar em um período de decadência, tanto criativa quanto pessoal. Com Bill Tytla não foi diferente. Ao mesmo tempo em que “Dumbo” se encontrava em produção, a Walt Disney Pictures passava por uma fase bastante difícil e conturbada: a greve de 1941 que reuniu mais de 300 profissionais do estúdio. Tudo começou com os grandes prejuízos econômicos obtidos pela Disney devido aos fracassos comerciais de “Pinóquio” e “Fantasia”, projetos ousados e muito caros que perderam uma quantia considerável de público principalmente após o estouro da 2ª Guerra Mundial. Tais problemas financeiros tiveram como consequências o cancelamento de vários projetos, o corte salarial de todos os funcionários, o fim do sistema de bônus concedidos aos melhores profissionais e, por fim, a demissão da mão-de-obra que pudesse “ser mandada embora de imediato sem afetar o trabalho que estava sendo feito”**, dentre outras medidas.
Mas não era só isso que estava acontecendo. Desde a construção do novo estúdio em Burbank, Walt Disney se tornava cada vez mais distante de sua equipe de animadores e já se envolvia menos com a produção dos filmes ao contrário de “Branca de Neve e os Sete Anões”, “Pinóquio” e “Fantasia”. Ou seja, se antes ele fazia o tipo descontraído, brincalhão e acessível a todos, agora Walt se transformava no típico patrão duro e frio para com seus empregados – o que incomodava em muito os antigos e novos profissionais da casa. Vários artistas também se sentiam insatisfeitos por terem sempre de seguir o que Walt Disney achava mais apropriado e nunca as suas próprias ideias, sendo que o cineasta, muitas vezes, não lhes dava crédito pelos trabalhos feitos nas seguintes animações (segundo Dave Hand na época, “não mencione nenhuma outra pessoa, exceto aquela, Walt” **). Além disso, não eram poucos os funcionários que reclamavam de seus salários baixos, sem falar daqueles que protestavam perante a supostos privilégios dados a certos animadores que, essencialmente, faziam o mesmo trabalho. Em síntese, todas as tensões geradas nesse meio período eram como um grande balão de ar que precisava apenas de uma única espetadinha para estourar de vez – e foi o que aconteceu quando o animador Art Babbit, o melhor amigo de Bill Tytla, foi demitido do estúdio por conta de suas atividades sindicais.
Greve nos Estúdios Disney em 1941
Havia sido a gota d’água. Em 28 de Maio de 1941, mais de 300 funcionários Disney, liderados por Art Babbit, entraram em uma greve que perdurou por mais de dois meses. E, para a total surpresa e consternação de Walt Disney, dentre o grupo de grevistas lá estava Vladimir Bill Tytla. Mas você deve estar se perguntando: afinal de contas, o que Tytla tinha a ver com esse movimento? Ele não era um dos animadores mais bem pagos do estúdio? De fato era. Na verdade, até hoje não se sabe ao certo quais motivos levaram nosso homenageado a entrar na linha de piquetes. Segundo posterior declaração do mestre: “Eu era a favor da empresa se manter unida, entrei de greve porque meus amigos entraram para o movimento. Eu simpatizava com os pontos de vista apresentados, mas nunca quis fazer nada contra Walt. Tentei encontrar uma solução com ele, mas alguém lhe disse para não trabalhar comigo.”.
Sobre este assunto, muitos lembram que Tytla ficou durante todo esse tempo recolhido (e chateado) em sua casa, mas, ao mesmo tempo, outros alegam que ele participou ativamente do movimento, a ponto de sugerir ser o substituto de Walt Disney como chefe do estúdio. Independente de sua posição na greve, o fato é que, após o término dela em Julho de 1941, as coisas jamais voltariam a ser como eram antes. Com o fim do movimento, Tytla retornou imediatamente à Disney, onde participou da animação do aviãozinho Pedro, do Pato Donald e do Zé Carioca em “Alô Amigos” (“Saludos Amigos” – 1942). No entanto, conforme declarou Adrianne Tytla, “havia muita tensão e eletricidade no ar. Com Vladimir tudo era instintivo e intuitivo, e agora as vibrações estavam todas erradas”.
Segmento “Aquarela do Brasil” do filme “Alô Amigos!” – Bill Tytla e Fred Moore trabalharam na animação de Zé Carioca e Pato Donald:
http://www.youtube.com/watch?v=lUMuOXpij6s&feature=player_detailpage
Teste de Animação para “O Gauchito Risonho”, curta este que seria parte de uma série de animações que acabaram não sendo finalizadas:
Wilfred Jackson até diria: “Bill trabalhava e ensinava as coisas para mim, assim como eu o dirigia. Quando o papagaio (Zé Carioca) dava uma pancada na cabeça do pato (Donald), ele batia na minha cabeça para eu ver como era.”. Contudo, o mestre realmente havia mudado. “Ele ficou distante; apenas se isolava”, observou seu assistente na época, Bob Carlson. “Ele vinha trabalhar, ficava em sua sala e ia para casa.” **. Em meio ao período de guerra, Tytla animou a bruxa e o cruel professor nazista no polêmico curta “Educação para a Morte” (“Education for Death” – 1943), sendo que o artista também foi responsável pela sequência da luta entre a águia americana e o polvo nazista no filme “Vitória Através do Poder Aéreo” (“Victory Through Air Power” – 1943). Tais animações, no entanto, o deixaram bastante insatisfeito. Elas simplesmente não faziam o tipo de trabalho desafiador com o qual ele lidava antigamente. Tytla começou a se sentir discriminado por Walt Disney, como se o cineasta agora estivesse o designando a tarefas menores só por causa de sua participação na greve de 1941 ( e de fato, há grandes chances de Walt ter tido mesmo essa intenção).
Além disso, Bill Tytla e sua esposa ansiavam em mudar para uma fazenda em Connecticut, principalmente após Adrianne ter pegado uma tuberculose que persistiu durante três anos. O medo de um novo ataque japonês também deixavam todos bastante alarmados. Em síntese, o artista já não podia mais adiar o inevitável. Em 25 de Fevereiro de 1943, ele se demitiu da Walt Disney Pictures, após cerca de 09 anos de trabalho no estúdio. Tytla se arrependeria desta decisão pelo resto de sua vida.
Os tempos de glória haviam terminado. Após se retirar da Disney, Bill Tytla retornou, novamente, à TerryToons. Entretanto, ele perceberia que a qualidade das animações do estúdio não havia melhorado muito desde que ele saíra de lá na década de 30 – e é claro, isso o deixou mais insatisfeito do que antes. “Acho que foi frustrante para ele”, explicou John Gentiella. “Ele realmente não poderia fazer o que queria fazer. Ele era um perfeccionista.”. Resultado: Tytla foi demitido da TerryToons no verão de 1944.
Em seguida, o artista trabalhou em outras renomadas empresas, incluindo o departamento de animação da Paramount / Famous Studios, onde dirigiu alguns curtas do Popeye, Luluzinha e Little Audrey (para estes dois últimos, ele se inspirou em sua filha Tammy). Contudo, se Tytla possuía um grande talento como animador, o mesmo não se podia dizer sobre seu desempenho como diretor, e, em 1950, o mestre decidiu deixar a Famous Studios.
“The Lost Dream” – curta da série “Little Audrey”, dirigido por Bill Tytla
http://www.youtube.com/watch?v=7KIIejuE8ps&feature=player_detailpage
No início da década de 1950, o artista ingressou para o estúdio de David Hilberman (ex-colega de trabalho na Disney), a Tempo Studio de Nova York, onde ele teve de lutar com o novo estilo moderno trazido às animações – estilo este que o deixou novamente frustrado, embora Tytla tenha feito bons trabalhos por lá, incluindo produções em stop-motion. Posteriormente, ele participou da criação de alguns comerciais televisivos no leste. Na verdade, o que Bill Tytla mais desejava… era voltar para a casa de Mickey Mouse.
Ele chegou a escrever para a Disney, sugerindo que o estúdio lhe enviasse algo para animar em sua fazenda, mas, infelizmente, acabou não obtendo sucesso. Já em 1954, Tytla visitou os seus ex-colegas de trabalho na Walt Disney Pictures, chegando inclusive a tirar uma foto com seu antigo chefe, Walt. Ele também declarou ao animador Marc Davis em Dezembro daquele ano: “Foram bons tempos que eu tive, me trouxeram um mundo de satisfação.”. Entretanto, o Comitê da Disney na época, querendo evitar competições, não permitiu que Tytla retornasse ao estúdio, embora há quem diga que Walt teria o aceitado de volta.
Trailer Original de “O incrível Mr. Limpet”
O último trabalho do artista no ramo foi a animação do longa-metragem “O incrível Mr. Limpet” (“The Incredible Mr. Limpet” – 1964), apesar de Tytla ter ficado doente no meio da produção do filme, de modo que seus trabalhos tiveram que ser finalizados por Bob McKimson, Hawley Pratt e Gerry Chiniquy. E pior: o mestre ainda sofreu de pequenos acidentes vasculares cerebrais que o deixaram cego do olho esquerdo. No entanto, uma última surpresa ainda aguardava o nosso homenageado. Em 13 de agosto de 1967, a noite de abertura da Montreal Expo’s World Exhibition of Animation Cinema contou com uma exibição do Clássico “Dumbo” como parte de um “Hommage Aux Pionniers.”. Tytla havia sido convidado e estava presente no evento, mas ao mesmo tempo ele temia que ninguém se lembrasse dele. Porém, eis que de repente os anfitriões da festa anunciaram a presença do “grande animador”! E quando os holofotes finalmente encontraram o velho cossaco, a plateia rompeu em uma violenta salva de palmas. A reação do artista? Simplesmente, um “dos grandes momentos de toda a sua vida”, nas palavras de John Culhane.
Mas a felicidade de Tytla não estava completa. Ele ainda queria voltar à Disney. Em 1968, o mestre se ofereceu para fazer animações experimentais no estúdio. Mas o vice-presidente da empresa, W.H. Anderson, rejeitou a oferta, dizendo: “Estamos produzindo apenas o que tem sido criado pelo atual grupo.”. Em 11 de Outubro de 1968, o diretor da Disney, Wolfgang Reithermand, daria uma resposta mais completa: “Sinto muito dizer que suas ideias não condizem com nossos projetos atuais… Não esquecemos que você está ansioso para animar por aqui, mas… nós mal mantemos nosso time de animadores ocupados. De qualquer forma, pode ter certeza de que tem muitos amigos no estúdio que estão torcendo por você.”.
Em completo estado de melancolia, Vladimir Bill Tytla enfim faleceu em sua fazenda no dia 31 de Dezembro de 1968.
Mas antes de encerrarmos este especial, voltemos para o nosso ponto de partida. No início de sua trajetória na 7ª arte, os desenhos animados eram apenas um conjunto de “gags” visuais, sem personagens e histórias mais elaboradas. Quem visse essas primeiras animações jamais iria supor que este gênero pudesse um dia alcançar o nível de excelência das produções em live-action. Foi então que Walt Disney e sua equipe de animadores apareceram para mudar essa história e depois deles a animação jamais foi a mesma. E certamente, Vladimir Bill Tytla foi um dos profissionais que mais se destacaram dentre este grupo pioneiro.
Bill Tytla foi um dos primeiros a provar a todos que as animações poderiam sim proporcionar ao público uma intensidade dramática muito forte. Afinal, quando vemos Chernabog se contorcendo perante a chegada da aurora ou Dumbo chorando ao visitar sua mãe na prisão, não estamos observando meros desenhos animados. Estamos contemplando algo envolvente, profundo, impactante, perturbador, tocante e, acima de tudo, humano. Seja repulsa ou piedade, o fato é que sentimos algo por essas personagens, mesmo elas não sendo feitas de carne e osso. E como se não bastasse tantos arcos dramáticos ainda nos deparamos com um fantástico perfeccionismo artístico. Desde suas primeiras animações na Disney, Bill Tytla se preocupava meticulosamente com a anatomia, o peso, os efeitos da gravidade e a fluidez dos movimentos em seus trabalhos animados, de modo a obter os melhores resultados possíveis. Assim ele sempre tentava e assim ele sempre conseguia.
É uma pena que Bill Tytla tenha se retirado do estúdio tão cedo. Só os Céus sabem o quanto ele poderia ter contribuído com os Clássicos lançados na década de 50 e 60. Contudo, o breve legado do nosso artista já é grande o suficiente para que ele seja aclamado por várias e várias gerações, pois muitas de suas criações até hoje não foram superadas nem pela própria Disney nem por outros estúdios de animação. Á esta Lenda Disney imortal uma grande salva de palmas acompanhada de nossas sinceras homenagens.
E se você quiser ver mais esboços e traçados do animador visite os portais Deja View (o blog do animador Andreas Deja), Michael Sporn Animation e o 50 Most Influential Disney Animators (este último inclusive também apresenta melhores avaliações de cada um dos trabalhos de Bill Tytla).
** Trechos do livro “Walt Disney: O Triunfo da Imaginação Americana”, escrito por Neal Gabler, traduzido por Ana Maria Mandim e publicado no Brasil pela Editora Novo Século. A obra também serviu de preciosa fonte para esta matéria.
Sinceros agradecimentos aos portais: 50 Most Influential Disney Animators, Deja View, Michael Sporn Animation, The Vladimir Tytla Page, Wikipédia, Animatoons, Living Lines Library, Nuestro Neverland mais o site oficial das Disney Legends.
Colaboraram Animaluco (Neto), Gabriel Brogno Alcântara, João Kasahara, Jonas Jax, Luís Júnior e Lucas Neves.
Todas as Imagens Disney aqui apresentadas pertencem exclusivamente à ©Disney e só são mostradas para fins educativos e de inspiração apenas.