ESTA CRÍTICA NÃO CONTÉM SPOILERS!
Fiquei atordoado. Não sabia o que dizer. Apenas sentir. Foi assim, como a Roberta Miranda bem descreveu há alguns anos, que eu me senti ao terminar de assistir a Luca, o mais recente longa-metragem do Pixar Animation Studios – já disponível no catálogo do Disney Plus, sem custo adicional.
Porém, antes de entrar nas razões para ter me sentido assim, preciso fazer uma pequena digressão.
Isto talvez te choque – e talvez seja um erro da minha parte assumi-lo –, mas a Casa do Luxo Jr. não é a minha favorita entre os estúdios dos quais o Mickey é dono. Este título pertence ao Walt Disney Animation Studios.
E não me entenda errado. Não odeio o estúdio ou algo parecido. Mas, infelizmente, ao longo dos anos, passei a considerá-lo muito superestimado. Pelo público geral, pelos admiradores de animação, e principalmente pelas premiações. Afinal, qual a explicação lógica para Toy Story 4 ter derrotado Klaus no Oscar® de 2020?
Não é incomum aclamarem a Pixar por produzir filmes com temáticas “adultas” ou “complexas”. Ou por criar um filme “dois em um”: um para as crianças e outro para os adultos. Ou pior ainda: por não fazer “filmes de meninas”.
Assim como é bem comum ver discussões ou artigos sobre a Casa do Luxo Jr. ser o melhor estúdio de animação de todos os tempos. E todo esse rasgar de seda parece ter subido à cabeça da luminária. Pois, filme após filme, uma soberba e uma presunção foram se revelando. como se todas as produções do estúdio fossem o suprassumo do entretenimento – isto é, desde que não faça parte da franquia Carros. E os longas ficaram cada vez mais ambiciosos e visualmente realistas.
Uma animação só é boa quando trata de temas “adultos” e/ou não é um musical? Realmente importa o quão absurdamente real é um cenário ou se dá para notar os fiapos na camisa de um brinquedo?
Tudo isso, ao meu ver, não passa de um tolo preconceito disfarçado contra as animações em geral, tentando desmerecê-las por não se encaixarem na fórmula ou padrão estético da Pixar, sejam as produções do Disney Animation ou de outros estúdios – estadunidenses ou não.
Logo, foi uma imensa e grata surpresa para mim assistir a Luca. Um filme nadando contra a maré do estúdio que o produziu. Não apenas por fugir completamente do realismo, como ser uma história despretensiosa e simples. Sim, simples. E talvez não exista um elogio maior a esse filme do que chamá-lo de simples.
Caso você não saiba, a animação conta a história de Luca, um curioso e tímido monstro marinho, com um certo fascínio pelo mundo humano. Um dia, Luca conhece outro monstro: Alberto. E em uma pequena cidade da Riviera Italiana, eles vão viver um verão transformador, tanto literal quanto figurativamente. Porque eles podem se disfarçar de humanos quando secos.
Ou seja, uma premissa bem familiar e talvez até clichê. E não há absolutamente nada de errado nisso. Não é preciso reinventar a roda, muito menos ter várias reviravoltas e vilões surpresas para contar uma ótima história e emocionar.
E isso, Luca faz com maestria. Embora o título leve o nome apenas de um deles, a relação de Luca e Alberto é o centro e o coração de todo o filme. Os dois se completam e trazem equilíbrio um ao outro, como se fossem as duas metades de uma mesma pessoa. Um é a cautela para os exageros do outro. E o outro é a confiança para as inseguranças de um.
Para o filme funcionar, era necessário dar tempo para o relacionamento da dupla florescer. E o diretor Enrico Casarosa e sua equipe souberam usufruir de cada minuto para construir muito bem esse pilar da história. Os laços entre Luca e Alberto surgem e crescem de forma tão natural a ponto de ser impossível não se afeiçoar e se envolver com eles.
Assim como em sua estreia na direção, no curta La Luna (2011), Casarosa trabalha aqui em uma escala muito mais intimista e contida. Quase como um conto de fadas ou um livro infantil. E essa abordagem é perfeita para a proposta do filme, parcialmente inspirado em memórias do diretor e em lendas italianas, e funciona como uma carta de amor para a infância e para a imaginação.
Um dos pontos principais da trama é a imaginação, aliás. Luca possui uma mente muito fértil e a equipe faz disso um espetáculo visual, com belíssimas cenas estilizadas para traduzir vários dos pensamentos e dos sonhos do protagonista.
Isto não fica restrito apenas a esses momentos. Todo o filme é visualmente lindo. Os cenários são lindíssimos, cheios de texturas artesanais e com cores vibrantes; e os personagens têm visuais únicos e marcantes, com movimentações cartunescas. E os efeitos especiais dão um toque a mais na construção desse mundo peculiar.
Todo esse trabalho faz de Luca uma obra ainda mais especial e singela, valorizando a infância e os momentos de brincadeira e de faz de conta. Aqui, não há pressa, não há preocupações com o futuro. É um exercício sobre estar presente e aproveitar todos os instantes, por mais breves que sejam.
O filme, dessa forma, funciona como uma pausa no mundo caótico e ultraconectado no qual vivemos, ainda mais na situação atual de pandemia. Porém, esse descanso e essas mensagens não podem ficar restritos apenas aos 95 minutos de duração…
Sempre é importante reforçar essa moral, por mais batida que seja. Em uma sociedade frenética, onde tudo é urgente e imediato, e o consumo de conteúdo e informações nunca acaba, tirar um tempo para apenas viver e respirar não é errado. É essencial.
De fato, Luca é uma trama sobre o cotidiano e o amadurecimento de dois garotos em um mundo estranho e gigantesco. Não é nada revolucionário ou inovador. No entanto, ao mesmo tempo, acaba sendo um alívio e um conforto. É simples e muito importante. E como comentei antes, é o maior elogio de todos, pois há muito para se explorar nessa simplicidade.
Como no caso dos protagonistas serem monstros marinhos disfarçados. O risco de uma possível exposição e, consequentemente, de não serem aceitos naquela sociedade abre espaço para várias leituras, especialmente sobre pessoas LGBTQIA+ que precisam esconder quem são para não serem segregadas.
Há muita nobreza e atemporalidade em histórias simples, e talvez isso explique o porquê dos contos de fadas serem tão lembrados até hoje e terem um poder tão grande no imaginário popular.
Foi essa simplicidade que me comoveu, muito mais do que eu esperava. E através dela, eu me enxerguei em Luca. Não apenas pelo nome parecido. Mas também pelo garoto ingênuo e tímido, com uma curiosidade e uma imaginação infinitas, que encontrou alguns Albertos e Giulias pelo caminho e saiu de sua zona de conforto.
Talvez Casarosa não tenha feito Luca para mudar o mundo, para revolucionar a indústria da animação ou render o bilionésimo Oscar® para o Pixar Animation Studios. Mas, com toda a certeza, Luca mudou o meu mundo – e por isso, eu serei eternamente grato.